quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Doce jabuticaba



31 de Dezembro de 2014. Dia de se despedir. Por motivos pessoais, detesto despedidas. Muito cedo precisei dar adeus ao que conhecia como lar e família. Por isso, só a ideia de dizer adeus me machuca, precisar dizer de fato me fere de morte. Será que ninguém percebeu o tamanho da injustiça que é precisar dizer adeus às pessoas que amamos? Por que ninguém faz nada a respeito?

Por necessidade, o amor desenvolveu um recurso contra despedidas indesejadas: aprendeu a eternizar a memória. Perdi meu avó há quase vinte anos, mas continuo amando-o. É assim, porque a memória eterniza o que amou. Isso não aprendi sozinho, mas com Rubem Alves:

"Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno".

Rubem Alves, que por sinal foi uma despedida indesejada que o ano me obrigou. Nenhum ser humano mexeu mais comigo nas dimensões política, espiritual e poética do que ele. Chorei em nossa despedida. Chorei copiosamente, sem vergonha. Fiquei indignado, pessoas como ele não deveriam acabar. Morri um pouco também.

Outra despedida dolorida foi a de Gabriel García Márquez. Esse ano perdi algumas amizades preciosas, às quais me dediquei em muitos e muitos anos anteriores. Despedir-me de bons amigos também me matou um pouco. Consolo encontrei na reconciliação com boa parte deles, porque me deram uma das maiores experiências da vida humana: o perdão. Sobre a grandeza da amizade e da reconciliação, é de Márquez as palavras escritas em meu coração: 

“Um único minuto de reconciliação vale mais do que toda uma vida de amizade”.

Com eles, partiu também João Ubaldo Ribeiro. Ele, que como Alves e Márquez, tinha sangue marxista correndo em suas veias. Deles aprendi que a justiça social e o respeito à dignidade humana são simplesmente inviáveis dentro do capitalismo. Meu sangue avermelhou ainda mais, virando à esquerda. Aprendi que política é fundamental e imprescindível, e até que todos tenham essa dimensão continuaremos a votar, nas palavras de Ribeiro, dessa forma: 

“O sujeito vai lá, tapa o nariz e vota”.

Morreu também Ariano Suassuna. Mais uma vez, chorei. Um dos grandes brasileiros, um dos grandes nordestinos que entregou ao Brasil produções de valor inestimável. Como os três acima, acreditava num populismo de coração, marcado pela profunda fé no povo. Coloca na boca de João Grilo o sentimento de quem vive à margem, bem como o a esperança que nasce entre eles, propagada pela melhor marca do cristianismo latino-americano – a saber, a Teologia da Libertação:

“É tanta qualidade que exigem para dar emprego, que não conheço nenhum patrão com condições de ser empregado.”

“Jesus morreu pelo pobres, Chicó. A gente pode se permitir certas intimidades.”

Homens sensíveis às causas do povo. Homens sensíveis aos outros. Homens sensíveis à natureza humana. Homens sensíveis. Homens poetas. A força da poesia em cada um deles, em toda a sua extensão de beleza, me fez perceber que a metáfora é transformadora em todas as dimensões.  É o caminho legítimo da salvação e da justificação do mundo.

Falando em poesia, o ano me levou Manoel de Barros. Um dos maiores. Fui apresentado a ele um pouco tarde, infelizmente. Mas fiquei feliz por descobrir sua inclinação à natureza, às coisas mais simples, encontradas no quintal de qualquer casa com um jardim. Tantas vezes tentei fazer poesia assim, e encontrar alguém que realmente conseguiu é inspirador. É dele a definição de poesia que mais gosto:

“Poesia é voar fora da asa”.

Escrevo para homenagear homens que dedicaram suas vidas à literatura. Dedicação que, pelo menos para mim, não foi em vão. Todos eles mexeram profundamente em minha visão de mundo, afetando-a de maneira irreversível.

Escrevo também  para fazer minha história e contá-la do meu jeito. Quero deixar registrado que hoje, sentado na sala do apartamento do Talles e da Nádia, em Paris, fiz minha oração por esses que foram. Minha prece, que acontece no encontro entre a ponta dos meus dedos e as teclas do meu notebook. Aprendi, com esses que partiram, que existe mais de um jeito de rezar e agradecer.

Paris, palco da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Ambas deixam o futuro mais saboroso, assim como a jabuticaba que sonhamos colher do pé que acabamos de plantar. É a esperança de desfrutar de sua doçura no futuro que nos faz cuidar da terra no presente.

Morreram grandes homens, e para eles fui obrigado a dizer adeus. Morreu grande parte de mim, e dela fui obrigado a me despedir. Mas sou um homem de fé,  e fé é apostar que a morte é apenas o anúncio da vida que está por vir.

A jabuticaba só adoçará se sua semente morrer para fazer nascer a jabuticabeira. Os pontos finais não são nada além do lugar onde os recomeços se encontram.

Lucas Lujan

4 comentários: