terça-feira, 13 de outubro de 2015

Torta crocante


Gosto de baunilha, com castanhas e calda de chocolate, toda contornada com chantilly. Meus olhos brilharam quando o garçom me serviu. Desacostumado, nem agradeci. Na primeira colherada do sorvete, provei um mundo inédito. Era a melhor sobremesa que eu havia comido em toda a minha vida.

Nasci numa família simples, de classe baixa.  Apesar de não nos faltar coisas básicas, não sobravam muitas. Nenhum luxo. Nunca saíamos pra comer, esse era um privilégio distante da nossa renda.

Estudava numa escola pública e a maior parte dos meus amigos advinham da mesma classe social que eu. Às vezes advinham de uma mais baixa,  e, poucas vezes, de uma classe mais alta – era o caso do Renato. Ele andava de Bulova e tênis da Nike.

O pai do Renato, Anísio, tinha um Tempra e um Pálio. Tinha também uma casa grande com piscina e uma geladeira lotada de besteiras - dentro dela vi, pela primeira vez numa casa, uma Coca-Cola em lata. Nem sabia que isso era possível, pensava que era exclusividade das lanchonetes.

Certo dia, depois da aula, o Anísio nos levou para comer no Habib’s. Era hora do almoço e ele decidiu fazer uma surpresa. Eu nunca tinha ido ao Habib’s, tampouco andado num Tempra. Foi uma verdadeira aventura. Fiquei impressionado com o carro, que virou o meu predileto na mesma hora.

Sentamos à mesa e o Anísio nos mandou pedir o que quiséssemos. Era como se eu estivesse num filme. Pedir o que eu quiser? Era um tipo de direito novo pra mim. Nem me lembro o que almocei, deve ter sido esfihas.

Lembro-me, mesmo, da sobremesa: torta crocante.

Gosto de baunilha, com castanhas e calda de chocolate, toda contornada com chantilly. Meus olhos brilharam quando o garçom me serviu. Era a melhor sobremesa que eu havia comida em toda a vida.

Não era apenas uma sobremesa que estava diante de mim, mas a descoberta de um mundo onde as pessoas comiam em restaurantes e podiam pedir o que quisessem. Era uma exclusividade que estava se estendendo a mim, por meio da generosidade de alguém que tinha dinheiro.

Para quem tem pouco, a sobremesa do restaurante mais popular é luxo. A torta crocante do Habib’s ainda é a minha sobremesa favorita, e vez ou outra passo lá para me deliciar com ela. Mas, hoje, ela tem mais sabor pelas boas lembranças que desperta.


O valor das coisas está para além do dinheiro que custam. O preço é só uma forma de baratear as experiências profundas da vida. Quem compra algo caro em busca de suprir os vazios da alma, não conhece a riqueza de sentar-se à mesa do Habib’s com um menino sem grana e dividir seus privilégios com ele.


Lucas Lujan

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O que não nos mata, nos colore



Por força da natureza, resistir e sobreviver são palavras de ordem. É cientificamente comprovado. Pesquisadores do mundo inteiro constataram o fato observando desengonçados que continuam a dançar, desafinados que seguem a cantar e corações partidos que insistem em amar.

Não existem humilhações suficientes para sufocar a vida que pulsa. Quando algo ferve nas veias o corpo todo esquenta, não importa a intensidade do frio.

Enquanto folheava as obras completas de Manoel de Barros, um carapanã pousou entre as páginas no exato momento em que fechei o livro. Reabri rapidamente e ele saiu voando, cheio de cores. Pensei tê-lo esmagado, mas estava numa montanha que cura os machucados.

Aconteceu num dia ensolarado. Era uma montanha alta, onde moravam duas borboletas. Elas deixavam um rastro de cores por onde voavam, no formato dos desenhos de suas asas.

Tratava-se de uma montanha encantada. Nela eram curados todos os que foram esmagados por alguma pressão letal. Tornavam-se coloridos e passavam a pintar o ar. Assim aconteceu com aquelas borboletas, que me convidaram para um café e me contaram sobre seus voos.

O caso é que se apaixonaram, ela e ela. Duas meninas. Passaram a voar juntas.

Vieram, contudo, de um lugar bárbaro e violento.  Uma terra regida pela crença de que só há um jeito de voar – que não é o delas. Lá, as pessoas dizem que não é natural lagartas virarem borboletas desse tipo. Revoltadas, submeteram-nas a todo tipo de humilhação. Pisaram com força em suas asas, esmagando-as, para que nunca mais voltassem a voar.

Todo esse ódio é movido por obediência à Borboleta Amor, uma espécie de rei que dá as regras por aquelas bandas. Irônico alguém carregar em seu nome o pressuposto de amar, mas inviabilizar relações amorosas.  

Feridas, as duas foram banidas. Mas por força da natureza, resistiram e sobreviveram. Afinal, aquilo que as aquecia continuava pulsando em suas veias. Mesmo com corações partidos, insistiram em amar. Voaram para a montanha, atraídas pela fome de viver onde pudessem voar como quisessem.

Resta o mistério de saber se o lugar era mágico mesmo antes de chegarem ou se foi o amor que carregavam em suas asas que encantou tudo por lá. Seja como for, passaram a colorir com seus movimentos.

A força da vida que pulsa por amor. O que não nos mata, nos colore.



Lucas Lujan

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Doce jabuticaba



31 de Dezembro de 2014. Dia de se despedir. Por motivos pessoais, detesto despedidas. Muito cedo precisei dar adeus ao que conhecia como lar e família. Por isso, só a ideia de dizer adeus me machuca, precisar dizer de fato me fere de morte. Será que ninguém percebeu o tamanho da injustiça que é precisar dizer adeus às pessoas que amamos? Por que ninguém faz nada a respeito?

Por necessidade, o amor desenvolveu um recurso contra despedidas indesejadas: aprendeu a eternizar a memória. Perdi meu avó há quase vinte anos, mas continuo amando-o. É assim, porque a memória eterniza o que amou. Isso não aprendi sozinho, mas com Rubem Alves:

"Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno".

Rubem Alves, que por sinal foi uma despedida indesejada que o ano me obrigou. Nenhum ser humano mexeu mais comigo nas dimensões política, espiritual e poética do que ele. Chorei em nossa despedida. Chorei copiosamente, sem vergonha. Fiquei indignado, pessoas como ele não deveriam acabar. Morri um pouco também.

Outra despedida dolorida foi a de Gabriel García Márquez. Esse ano perdi algumas amizades preciosas, às quais me dediquei em muitos e muitos anos anteriores. Despedir-me de bons amigos também me matou um pouco. Consolo encontrei na reconciliação com boa parte deles, porque me deram uma das maiores experiências da vida humana: o perdão. Sobre a grandeza da amizade e da reconciliação, é de Márquez as palavras escritas em meu coração: 

“Um único minuto de reconciliação vale mais do que toda uma vida de amizade”.

Com eles, partiu também João Ubaldo Ribeiro. Ele, que como Alves e Márquez, tinha sangue marxista correndo em suas veias. Deles aprendi que a justiça social e o respeito à dignidade humana são simplesmente inviáveis dentro do capitalismo. Meu sangue avermelhou ainda mais, virando à esquerda. Aprendi que política é fundamental e imprescindível, e até que todos tenham essa dimensão continuaremos a votar, nas palavras de Ribeiro, dessa forma: 

“O sujeito vai lá, tapa o nariz e vota”.

Morreu também Ariano Suassuna. Mais uma vez, chorei. Um dos grandes brasileiros, um dos grandes nordestinos que entregou ao Brasil produções de valor inestimável. Como os três acima, acreditava num populismo de coração, marcado pela profunda fé no povo. Coloca na boca de João Grilo o sentimento de quem vive à margem, bem como o a esperança que nasce entre eles, propagada pela melhor marca do cristianismo latino-americano – a saber, a Teologia da Libertação:

“É tanta qualidade que exigem para dar emprego, que não conheço nenhum patrão com condições de ser empregado.”

“Jesus morreu pelo pobres, Chicó. A gente pode se permitir certas intimidades.”

Homens sensíveis às causas do povo. Homens sensíveis aos outros. Homens sensíveis à natureza humana. Homens sensíveis. Homens poetas. A força da poesia em cada um deles, em toda a sua extensão de beleza, me fez perceber que a metáfora é transformadora em todas as dimensões.  É o caminho legítimo da salvação e da justificação do mundo.

Falando em poesia, o ano me levou Manoel de Barros. Um dos maiores. Fui apresentado a ele um pouco tarde, infelizmente. Mas fiquei feliz por descobrir sua inclinação à natureza, às coisas mais simples, encontradas no quintal de qualquer casa com um jardim. Tantas vezes tentei fazer poesia assim, e encontrar alguém que realmente conseguiu é inspirador. É dele a definição de poesia que mais gosto:

“Poesia é voar fora da asa”.

Escrevo para homenagear homens que dedicaram suas vidas à literatura. Dedicação que, pelo menos para mim, não foi em vão. Todos eles mexeram profundamente em minha visão de mundo, afetando-a de maneira irreversível.

Escrevo também  para fazer minha história e contá-la do meu jeito. Quero deixar registrado que hoje, sentado na sala do apartamento do Talles e da Nádia, em Paris, fiz minha oração por esses que foram. Minha prece, que acontece no encontro entre a ponta dos meus dedos e as teclas do meu notebook. Aprendi, com esses que partiram, que existe mais de um jeito de rezar e agradecer.

Paris, palco da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Ambas deixam o futuro mais saboroso, assim como a jabuticaba que sonhamos colher do pé que acabamos de plantar. É a esperança de desfrutar de sua doçura no futuro que nos faz cuidar da terra no presente.

Morreram grandes homens, e para eles fui obrigado a dizer adeus. Morreu grande parte de mim, e dela fui obrigado a me despedir. Mas sou um homem de fé,  e fé é apostar que a morte é apenas o anúncio da vida que está por vir.

A jabuticaba só adoçará se sua semente morrer para fazer nascer a jabuticabeira. Os pontos finais não são nada além do lugar onde os recomeços se encontram.

Lucas Lujan

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Salada de sonhos



Ele é predominantemente verde, mas com cores por todos os lados. Vermelho, laranja, roxo, amarelo e tantos outros tons entre dó e si. Vivo e pulsante, é possível sentir o chão adocicado vibrar sob os pés. É assim meu jardim de sonhos.

Lá planto esperanças para fazer a terra engravidar do futuro. Ela gesta em mim possibilidades e expectativas, cada uma com um sabor. São mangas, goiabas, amoras, caquis, jabuticabas, melancias e tangerinas.

Nem sempre a fruta nasce em seu próprio pé. Já aconteceu de nascer uva em macieira. Alguns sonhos não respeitam a lógica, transgridem as circunstâncias e nascem onde querem. Eles tocam a canção em F#m7/D#, sobre a falta de controle que pauta a vida de todos nós.

Aconteceu num fim de tarde, sem nenhum aviso. Colhi umas acerolas e, quando coloquei a primeira na boca, senti o estranho sabor amargo dominar o fundo da minha língua. Nem sempre a vida é doce.

Quando os dias amargam é preciso revisitar os passos dados na última plantação. Pode até ser que não tenha nada a ver com o processo utilizado ou com as sementes plantadas, às vezes as contingências são maiores e os acidentes inevitáveis. Contudo, na maior parte das histórias, o problema está mesmo nas sementes que foram lançadas.

Semeadas por um coração amargo, frutificam dias indigestos. Apesar do clichê, é verdade que quase sempre se colhe o que se plantou. Para que o pé de amigos fique carregado e colorido, é preciso plantar fidelidade, parceria e cumplicidade. Plantando mentiras e infidelidade, o que se obtém são amizades amarguradas.

Que fique claro para todos os jardineiros. Para que os sonhos façam sucos refrescantes é preciso cuidar das sementes. Para que a felicidade visite a ponta da língua, é preciso cuidar do pé de amor(as).

Vez por outra, contudo, a lógica se quebra. Como disse, às vezes colhemos o que não plantamos. Pode acontecer de plantarmos ódio e colhermos perdão, semearmos traição e colhermos fidelidade. Essa é uma das colheitas mais misteriosas que existem, porque rompem com todas as condições normais de temperatura e pressão. É a colheita da graça.

Ela não apenas desrespeita causa e efeito como transgride. A graça é sempre transgressora. Ela não apenas deixa de punir como deveria, como oferece um favor imerecido. Ela não investiga qual a semente plantada para frutificar compaixão. A compaixão é seu fruto incondicional.

Aconteceu no meu jardim. Enquanto passeava colhendo amarguras, enxerguei um pé de compaixão que não plantei. Tinha uma copa linda, que me fixou os olhos. Nela estavam frutos doces e carnudos. Deu-me de comer quando tive fome.  

A graça transgride e por isso incomoda. Ela não cobra sangue de quem fez sangrar. Um jardim feito só de lágrimas não atrai o olhar. Só quem deseja jardins coloridos é capaz de aceitar a transgressão da misericórdia e fazer da gratuidade uma rede para descansar sob o abacateiro.  

Lucas Lujan

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Amanhã tem sol





Eram 07h45 e o vento soprava gelado. As árvores agitavam suas copas, que contrastavam com nuvens carregadas. O dia nublado não oferecia um convite para desfrutá-lo sentado ao pé da jabuticabeira, mas como não sou apegado a formalidades, decidi me sentar sob as jabuticabas mesmo assim.

Peguei um casaco pesado e um copo com café quente,  sentei na grama e apoiei minhas costas no tronco da árvore. Me preparei para passar as próximas horas em silêncio, apenas ouvindo a prosa que o jardim tinha para contar.

Passado algum tempo, o quieto jardim abriu um belo sorriso amarelo: uma plantação de girassóis saltou diante dos meus olhos chamando minha atenção. Observei cada flor e reparei que todas estavam em suas posições originais, pois a ausência do sol as deixava sem movimento. Todas, menos uma.

Entre todos girassóis estáticos daquele dia grisalho, um se movimentava como se o sol estivesse raiando. Intrigado, me demorei na contemplação do fenômeno inusitado.

No começo da manhã, ao contrário de todos os outros, o meu girassol se inclinava para o leste. Era lá que o sol lhe daria um beijo de saudação. Ao longo do dia, seguiu o caminho que o Grande Astro faria até se despedir no oeste, repousando no horizonte. Do oriente ao ocidente, aquela incrível flor percorreu todo o trajeto solar ignorando o dia pálido.

Colhi algumas jabuticabas e meditei ao cair da noite. A doçura das frutas me ajudou a saborear aquela cena. Digeri a conversa e logo entendi seu ponto.

Nos nublados dias de chuva, o girassol fecha seus olhos e se movimenta como se o dia estivesse raiando. Repete o mesmo movimento dos dias ensolarados, ensaiando para o próximo encontro com o sol. É assim que mantém sua raiz aquecida, num gesto de esperança.

Levantei-me e fui até a flor. Cuidadosamente arranquei o girassol da terra e plantei sua raiz no peito, para germinar um campo de esperança em mim. Um lugar onde eu possa colher o futuro. Agora ensaio movimentos de alegria mesmo nos dias tristes, porque aprendi a confiar que sempre há um próximo encontro com o sol.


Lucas Lujan 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O mundo lá fora


Uma alegria agitada. Inquieta e com o rabo abanando, enfia o focinho no vidro e assiste o mundo passar diante dos seus olhos, do lado de fora do carro. São assim os passeios de carro da Chérie, a cadelinha shi-tzu da minha irmã e do meu cunhado.
                                                                                
Sentada no colo do passageiro, contempla o desconhecido e misterioso universo que existe fora de seu abrigo aquecido e protegido. Os cachorros que vê na rua são diferentes dela. Alguns bem diferentes. Fortes, grandes, com patas longas e focinhos compridos. Outros têm orelhas largas e caídas, rabos cortados ou bolinhas pretas no corpo.

Ela se encanta com a diversidade das raças. Percebe que existem outros jeitos de ser cachorro e outros mundos possíveis para viver. Comparando-se, às vezes gostaria de ser um pouco maior ou menos peluda. Gostaria de morar numa casa grande ao invés de um apartamento. Percebe que talvez nem sua raça nem seu mundo sejam os melhores que existem.

Sei disso porque ela me conta sobre essas experiências. Claro, nem sempre. Afinal, não é toda hora que um cachorro fala. Só acontece quando deixa o constrangimento de lado depois de um ou dois biscoitos afogados em Amarula que dou para ela. Ou talvez depois de dois ou três drinks que preparo para mim mesmo com a bebida. Seja como for, não acontece sempre.

Sua reclamação mais constante, contudo, é a coleira que é obrigada a usar. Toda vez que a porta do carro abre anunciando várias novas experiências e possibilidades, tudo o que ela consegue fazer é dar cinco passos e meio até que a coleira trave a sua aventura. Ela se vê obrigada a permanecer dentro de um limite previamente estabelecido por seus donos.

Uma vez perdi um cachorro. Um cocker preto chamado Simba. Fugiu pelo portão e desapareceu. Perdeu-se no mundo lá fora, porque não conhecia absolutamente nada sobre ele. Até encontrar o caminho de volta para casa, teve que viver a vida como ela é. Sem coleiras, sem limites. Sofreu e se machucou. Mas quando voltou, estava mais cocker do que nunca. A liberdade tinha feito com que encontrasse consigo mesmo e entendesse seu papel no mundo. Nunca mais usei uma coleira nele.

Geralmente donos não deixam seus cachorros sem coleiras, pois querem evitar a experiência que o Simba teve. E eu entendo. Ninguém quer ver seu cachorro sofrendo e ferido. Por isso se comportam como donos e estabelecem um perímetro seguro para seus cães.

Fiquei pensando na conversa com a Chérie. Em quantas pessoas assistem a vida passar diante dos seus olhos, e com o focinho colado no vidro desejam uma experiência de vida que ultrapasse o limite do abrigo aquecido e protegido, mas acabam travadas por códigos morais e valores religiosos que impedem que encontrem consigo mesmas e entendam seu papel no mundo.

Como coleiras, doutrinas e dogmas encurtam o espaço da liberdade humana. Mas ao contrário dos cachorros, seres humanos não têm dono. Mulheres e homens nascem para a liberdade. 


Lucas Lujan

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Deus é macio e saboroso



Reunir alegria suficiente nos dias bons para enfrentar a tristeza dos dias ruins. Esse movimento mantém a esperança aquecendo durante o inverno. Momentos de contentamento aparecem e deles é preciso se tornar aprendiz. Ser feliz tem mais a ver com o jeito que se vive uma circunstância do que com a circunstância em si.

Era um almoço. Na mesa amigos, piadas, risadas e, claro, comida. Ingredientes perfeitos para o bolo das boas lembranças. Colocaram-nos na batedeira e depois para assar. Cheiro de sorriso etéreo no forno.

“- Isso não é picanha”, exclamou um de nós. E continuou: “- Pode até ter o nome da picanha, mas o sabor é de coxão mole”. Fiquei pensando que as palavras podem ser traiçoeiras ao tentar definir algo; ao tentar transformar o sabor pelo rótulo. Picanha é picanha, coxão mole é coxão mole. Chamar o coxão mole de picanha não o deixará mais gostoso.

No campo das definições, o sabor desempenha um papel melhor que as palavras. Em um mundo regido por sentidos, as sensações promovem uma melhor experiência de conhecimento. Pode-se colocar um sorvete Kibon dentro da embalagem de um Häagen-Dazs, mas ele ainda será Kibon.  

Assim, não adianta chamar de bom o que tem gosto ruim. Nem chamar de salgado o que tem gosto doce. De nada vale tentar desvalorizar alguém que tem valor com palavras de ódio. Tampouco engrandecer quem é pequeno usando frases de efeito. As palavras desaparecerão quando o paladar provar seu gosto.

É assim, também, a respeito de Deus. Por se tratar de uma palavra, é possível usá-la para qualquer coisa. Enquanto palavra, “Deus” pode dar nome a todo tipo de carne. Contudo, coxão mole nunca será picanha porque seu sabor é outro. Se for duro, seco e difícil de mastigar, não pode ser Deus de fato.

As religiões se parecem com churrascarias. Algumas vendem coxão mole como se fosse picanha; outras brigam para descobrir quem sabe preparar a melhor picanha. Mas no fundo, no fundo, não se trata da picanha. Trata-se de quem vai vender mais carne.

O almoço acabou e voltamos para o trabalho. Tive a sensação de ter me encontrado com Deus. Não com a palavra, mas com o sabor. Não porque estava numa churrascaria, mas por causa da mesa em que me sentei.

Não são as palavras que melhor revelam a Deus. Palavras podem enganar. Discursos podem ser bonitos mas esconder coisas feias. A melhor revelação está no que sentimos, nas sensações que o gosto de Deus provocam na alma. Se for macio e saboroso é Deus, mesmo que O estejam chamando por outro nome.   
   
Lucas Lujan