terça-feira, 21 de maio de 2013

Martelo e cinzel



Uma das frases de efeito que mais desprezo é: “as coisas são assim mesmo, não vão mudar nunca”. Desprezo antes de tudo porque é mentira. Ao longo dos milhares de anos da história humana as coisas mudaram muito e muitas vezes. Segundo porque gera em nós um espírito de acomodação e passividade.

Romain Rolland disse: “os homens inventaram o destino a fim de lhe atribuir as desordens do universo, que eles têm por dever governar.”

O fatalismo do “é assim mesmo”, ou do “se foi assim, é porque era para ser”, produziu uma juventude calma, anestesiada e, consequentemente, adormecida. Toda fome por transformações e mudanças – típica dos jovens – tem sido saciada com consumo, futilidades, dinheiro e propaganda. Mas bem alertou Santo Agostinho: “pão pintado não mata a fome.” A atual geração de jovens está matando a fome com o que não mata a fome, e quando se derem conta do que deixaram passar, provavelmente se arrependerão pelos anos desperdiçados com bobagens vãs e sem sentido.

Perdemos a dimensão da construção da história e produção do futuro. Talvez seja essa a grande doença da atual juventude: a falta de expectativa do amanhã. Num terrível e burro uso do carpe diem, acabamos por acreditar que a vida se resume a hoje. Idiotice monumental de uma geração sem perspectiva.   

Precisamos, de uma vez por todas, entender que nem nós, nem a história, nascemos prontos. Estamos sendo, e por ser feitos. Paulo Freire:

O mundo não é. O mundo está sendo. Meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito das ocorrências. Não sou apenas objeto da história, mas seu sujeito igualmente. No mundo da história, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar.”

Quem foi que roubou de nós essa dimensão da vida? Quando perceberemos o poder que temos como sujeitos da história?

Gilbert Cesbron fez a pergunta que quero colocar diante de você que está lendo esse texto: “e se fosse isso perder a vida: fazermos a nós mesmos as perguntas essenciais tarde demais?

Escrevo como um apelo para que você não demore para se fazer as perguntas fundamentais.

Não aceite pão pintado. Só pode viver saciado quem se alimenta de pão do trigo. Só pode encontrar sentido para viver quem se entrega àquilo que acredita; àquilo que faz pulsar o coração. Todo o resto é inútil na tarefa de plenificar a existência.

Sim, sou idealista. Solidariedade, afeto, respeito, engajamento e utopia não são coisas de antigamente, mas de futuramente – como ensina Cortella.

Precisamos nos desfazer da ideia de destino imutável. Precisamos acordar de nossa inércia e inatividade. Precisamos ouvir nosso coração e atender ao chamado da juventude que tem fome pela mudança. Se não produzirmos um futuro para nós e para nossos filhos, ninguém os fará por nós. Levar isso a sério é nos levar a sério.

É preciso manter a esperança. Só ela produz o futuro ao mesmo tempo que aniquila a dureza de viver.

Lu Xun, poeta chinês escreveu: “a esperança não é nem realidade nem fantasia, ela é como os caminhos da terra: sobre a terra não havia caminhos, eles foram feitos pelo grande número dos que passaram”.

Precisamos caminhar para fazer o caminho. Sem movimento não há perspectiva. Sem caminho não há para onde ir. Caminhar é uma aposta de fé. E fé é o nome da coragem animada por Deus.

Quando perguntaram para o Michelangelo como ele havia conseguido esculpir com tanta perfeição o Davi, ele respondeu: “foi fácil, fiquei olhando para o mármore por um bom tempo até nele enxergar o Davi. Aí, peguei o martelo e o cinzel e tirei dele tudo o que não era Davi”.

Precisamos olhar o futuro por um tempo e enxergar nele a esperança. Depois, pegar o martelo e o cinzel e tirar dele tudo o que não for esperança.


Lucas Lujan

terça-feira, 14 de maio de 2013

Tábuas



Há tempestades que provocam grandes erosões em nossa alma, mesmo em solos que considerávamos estáveis. Depois de abertas, até uma garoa fina é dilúvio, tamanho o estrago que faz em nós. Por isso é tão importante empenhar-se em aterrá-las.

Não é uma tarefa fácil, mas extremamente importante. Afinal, viver esburacado é um não viver. A cada novo centímetro na erosão, um pouco de nossa humanidade se perde. Se não tratada, a erosão pode levar a desertificação.

São necessárias muitas virtudes para aterrar um buraco aberto em nós. Entre as principais estão a coragem, a paciência e o amor. Elas devem se unir ao trabalho de recuperar a nossa integridade, tarefa que não pode acontecer sem muita disposição.

Por isso inventaram as tábuas. Elas oferecem um atalho para resolver o problema: ao invés de aterrar o buraco para continuar a caminhada, a tábua oferece a alternativa de passar por cima dele, como uma ponte, sem precisar de esforço.

Ela vence o problema imediato, mas deixa uma lacuna nociva para trás. De tábua em tábua, nos tornamos um imenso vazio. Uma profunda negação do nosso ser, que decorre na completa perda da nossa alma.

Existem muitos lugares oferecendo tábuas. Elas são vendidas sob a promessa de acabar com o sofrimento; de reatar o casamento; de recuperar o amor dos filhos; de conquistar o respeito da mãe; de curar amizades feridas; de conseguir um namorado, ou um emprego; e por aí vai.

Promessas falsas, porque não tratam o problema, apenas passam por cima dele ignorando-o. Há um buraco para ser aterrado! Antes disso, ponte nenhuma vai levar a lugar algum. As tábuas servem apenas como distração – distração de si mesmo.

Faça o caminho de volta se livrando de todas as tábuas. Com coragem, paciência e amor, aterre cada buraco com esforço. Nada que vale a pena na vida é fácil.

Lucas Lujan

terça-feira, 7 de maio de 2013

A beleza



Nos acostumamos rápido. De tanto vermos e sentirmos as mesmas coisas, de contemplarmos quase sempre a mesma paisagem e o mesmo horizonte, acabamos nos desencantando. Nada de extraordinário nos chama atenção. Passamos a andar com a cabeça baixa, com os olhos presos ao chão.

É quando tudo vira mais do mesmo. Rasga-se o dossel que envolvia a atmosfera de nosso universo particular.

Sorte daqueles que, em meio a rotina, reencontram-se com a beleza. Nada mais pode salvar uma vida, porque o que é a beleza senão a sombra de Deus no mundo?

Já aconteceu comigo. Eu andava num campo de cabeça baixa, sem prestar atenção no que estava ao meu redor. Desatento. Acostumado. Tudo era igual mesmo, portanto olhar para o meus pés fazia mais sentido. O esforço de manter a cabeça erguida era inútil.

De repente alguma coisa forte, muito forte, me fez olhar para frente e fitar o horizonte. Olhei e demorei para entender a imagem nova que se desvelava para mim, fazia tempo que não a contemplava. Ela estava lá, a beleza. E tudo era feito dela: o chão, o sol, o tempo e o horizonte. O ar, e a cada respiração o mundo ficava mais bonito.

Aquela força incrivelmente bonita me encheu de coragem para caminhar, para ir buscar o horizonte. A atmosfera sacralizou-se novamente. O encanto repousou sobre mim.

O mundo que tornara-se ordinário voltou a ser extraordinário. Tudo foi reencantado, o novo e o antigo, porque não há limites para a beleza. Ela perpassa todas as dimensões de todos os tempos.

A beleza é uma gratuidade do acaso. É preciso sensibilidade para percebe-la, porque surge em lugares inesperados, quando menos esperamos.

Não existe força maior do que a que emana dela. Torna a cena linda demais para que a vida seja qualquer coisa. E ela por si só basta como explicação. Valeu a pena porque foi uma bela experiência. É um empoderamento estético, um valor autônomo.

Quase sempre procuramos respostas na razão. É a ela que dirigimos nossas perguntas. Acontece que muitas vezes não se trata de pensar, mas de sentir. Não se trata da razão, mas da beleza. Ela coloca na experiência o valor mais alto, sagrado e inegociável.

É sobre isso a nossa existência. Menos sobre pensar a razão de estarmos aqui e mais sobre aproveitar a oportunidade. Por isso é tão importante o amor, porque é a beleza de amar que faz tudo valer a pena. É a experiência estética que emprega sentido à vida.

Lucas Lujan

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Deus fala



Deus sempre falou com a humanidade. Falou na história, por meio da história. E acredito que Ele ainda fala.

Eu o ouço. Não se espante, não fiquei louco. O que aconteceu é que passei a ouvir com mais atenção. Treinei meus ouvidos. Ajustei minha interpretação. Procurei o caminho da sensibilidade e do amor.

O ouço na risada do bebê que brinca com a comida; na gritaria das crianças que correm no parque; às vezes sua voz tem tom feminino, de mãe aconselhando filho, outras, tom masculino, de pai fazendo piada pra ver a filha sorrir.

O escuto no lamento diante do acidente; no silêncio desesperado do marido que perde a esposa prematuramente; no grito agudo da mulher que é abusada; no choro de fome das crianças do sertão; no sussurro envergonhado de quem é excluído; nas palavras desamparadas de quem não tem onde dormir ou o que vestir; muitas vezes sua voz é rouca por causa de sua garganta sedenta.

Ouço Deus nas palavras das hospitaleiras que recebem pessoas em casa, servem comida à vontade e cedem a cama; ouço Deus pela voz do professor que luta para educar; nos lábios de quem reage contra a injustiça; nas palavras apressadas do médico para que a vida não se vá; sua voz é nítida e forte saída da boca do bombeiro que orienta buscas no morro soterrado.

Ouço sua angustia diante das absurdas injustiças sociais, de toda opressão econômica e política; ouço seu protesto na voz de quem se sente desrespeitado em campanhas eleitorais; sua voz é fraca nos lábios de quem foi humilhado, mas forte quando emitida por quem quer dignidade.

Já ouvi sua voz serena conceder paz e perdão ao errante; já escutei suas palavras misericordiosas ditas ao culpado; ouço-o nas palavras de quem não perde a esperança diante do caos; na confiança de quem acredita no amor; no trincar de dentes do menino soldado que teve sua infância roubada, mas que não desiste da vida.

Sua voz é afinada no canto da faxineira que levanta de madrugada para sustentar os filhos; é empoeirada no pedreiro que não almoça para poder jantar; é molhada na boca da lavadeira que alimenta o pai doente; é amarga na boca de quem tem amor ausente.

Voz de justiça nos lábios do juiz íntegro, do advogado responsável; voz de igualdade social emitida pelo banqueiro dos pobres; voz profética na boca do padre que denuncia a indiferença, na boca o pastor que aponta a corrupção.

Ouço-o na beleza das palavras do poeta; na música do compositor apaixonado; nas mãos de instrumentistas habilidosos; nas páginas dos escritores vislumbrados com o mundo; na arte de quem reverencia a vida humana.  

Sua voz nunca tem tom de poder, de autoritarismo, de imposição. Ao contrário, o ouço na fraqueza do nazareno crucificado.

Deus se revela pela Palavra. Palavra encarnada, jogada na vida, mundana. Por isso é possível ouvi-lo.

A questão, então, não é se Deus fala; é quem está disposto a ouvi-lo.

Lucas Lujan