terça-feira, 22 de abril de 2014

Não desista de si mesmo


Era uma conversa por telefone. Amigo de longe, ser humano bonito. Duvidava de sua coragem para viver. Eu, ao contrário, o julgava forte e seguro. Admirável. Era sensível e sabia tratar as pessoas com carinho.

Enquanto conversávamos, me confundi várias vezes com ele. Enfrentávamos dramas, não semelhantes nas circunstâncias, mas nas dores. Todos que sofrem, não importa o motivo, têm em comum a dor. Esse deveria ser um convite à solidariedade e à compaixão mas, egoístas, insistimos em sofrer sozinhos e ignorar o sofrimento alheio. Tão pequeno de nossa parte.

O remédio para o sofrimento não é deixar de sofrer, é ter com quem reparti-lo. Não sofrer é uma impossibilidade, dividi-lo é empreendimento do amor. Descobrir que alguém sente nossa ferida é o caminho para curá-la, porque a dor se dilui nos corações envolvidos. Quem tem companhia anda pelo vale da sombra da morte sem temer.

Contava-me que pensara em desistir da vida. Tão breve e frágil, muitas vezes perdia o sentido e nem sempre era fácil reencontrá-lo. Divagava sobre todas as inseguranças e incertezas da existência. Ele tinha razão, suas palavras me atingiam e encontravam em mim cabimento.

Tantas vezes pensei em desistir. Entregar-me à correnteza dos dessabores e me afogar no mar do esquecimento. Já quis mesmo me esquecer de mim. Por isso fui honesto e disse a ele que muitas vezes sentia o mesmo, e acreditava que todos, em algum momento, se sentiriam assim. É a inevitável angústia de viver, o desespero humano que nos visita hora ou outra. Legítimo.

Contei à ele sobre quando meu pai deixou minha família. Enfrentamos dias difíceis e amargos. Muitas vezes ouvi minha mãe chorar no banho, porque tentava nos proteger de seu sofrimento e desespero. Falei que ela tinha motivos para desistir.

Mas não desistiu.

Para o desespero humano, um salto de fé. Minha mãe não sucumbiu porque tinha fé. Acreditava que a angústia e o desespero não eram maiores que o amor; que os próximos dias seriam melhores, porque a felicidade era possível. E de fato a vi feliz nos anos que se seguiram.

Então passei a acreditar no futuro também. Vi que ele traz motivos para querer viver. E porque acredito, não desisto. O segredo é reunir forças nos dias bons para enfrentar os ruins.

A vida é bonita, mesmo quando faz careta.  Falei para ele sobre as infinitas possibilidades que estaria perdendo e sobre todos os amores que não viveria se entregando. Falei dos amigos que não faria, da família que não teria e dos vinhos que não experimentaria.

A vida é tão boa que seduziu Deus. Entregue, se fez homem para vivê-la.

Não se trata de ignorar as dificuldades da vida, mas de dar o salto de fé e enfrentá-las com bom ânimo. 

Encerrei a conversa com uma alegoria, que construí para nós dois:

“- Pense nas flores dentes-de-leão, amigo. Quando estão secas e o vento sopra forte, se despedaçam e voam para longe. Ficam com a aparência destruída. Mas são suas sementes que voam, e farão brotar mais dentes-de-leão noutros lugares. O mesmo acontece com a gente. Quando o vento atinge com violência nos despedaça e destrói, mas nossos cacos logo encontram terreno fértil para renascermos de maneiras novas e bonitas. Sempre que pensar em desistir, lembre que os campos ficariam menos coloridos sem dentes-de-leão.”.


Lucas Lujan

quinta-feira, 17 de abril de 2014

O maior poder que existe


Caderno de caligrafia, lápis e borracha. Concentrado, tentava desenhar as letras. Estava na 3ª série e enfrentava o desafio da alfabetização – e o de ter uma letra bonita, que nunca consegui vencer. Minha professora chamou por meu nome e quando levantei a cabeça, vi minha irmã na porta da sala.

A Erica é dona de uma expressão de tristeza inconfundível. Seus olhos ficam marejados e caídos, e com a boca faz o bico mais emburrado da zona sul de São Paulo. Eu até que gostava de provocá-lo às vezes, mas aquele era diferente. Trazia medo e insegurança, e diante desses sentimentos, ela foi procurar alguém de confiança para protegê-la.

Como eu, ela demorou a se adaptar à escola. Deixar nossa casa segura e ir para um lugar com gente desconhecida era mesmo assustador. Eu entendia exatamente como ela se sentia. Lembrava-me de como o primeiro ano na escola tinha sido difícil para mim – só que eu não tinha um irmão mais velho para recorrer.

Fui até a porta e a trouxe para a minha carteira. Puxei uma cadeira para ela sentar ao meu lado e pedi sua ajuda na tarefa que estava fazendo. Ela desfez a cara de choro e relaxou. Acabou se distraindo comigo. Depois de um tempo se sentiu segura para voltar à sua própria sala e atividades. Não lembro a duração daquele tempo, porque quando estamos com quem amamos o tempo se eterniza. Para mim aquela manhã com ela dura até hoje.

Minha irmã é apenas um ano e meio mais nova que eu. Eu não me sentia a pessoa mais forte e preparada da escola para protegê-la. Não me via nessa condição. Acontece que ela me via. Para ela, eu inspirava segurança e proteção. Não por meu tamanho ou idade, mas porque ela sabia que eu a amava e por isso cuidaria dela.

Aprendi uma lição com isso. O que pensamos a nosso respeito não é exatamente o que os outros pensam. Às vezes não nos sentimos aptos para uma tarefa, mas há quem acredite, confie e precise de nós. Não por nosso tamanho, força ou excelência, mas por amor. Tornamo-nos poderosos para quem nos ama e por nós se sente amado.

É o amor, em sua absoluta fragilidade, o maior poder que existe.

Por mais inadequado que se sinta, saiba que há quem acredite, confie e precise de você. Não por sua excelência, tamanho ou força, mas porque você é amado. Não se subestime, você reúne condições para proteger, cuidar e amparar. Se há amor em você, está pronto para oferecer o que as pessoas à sua volta mais precisam.

O amor da minha irmã por mim inspirava coragem para assumir a tarefa de protegê-la. Sua confiança me dava força para ampará-la, mesmo em condições precárias e limitadas. Ela me amava e por isso me sentia poderoso. Eu a amava e por isso enfrentei meu sentimento de insuficiência.

Sigo desconfiando da minha capacidade de cuidar da minha irmã. Ainda não me sinto forte e preparado o suficiente. Mas sei que na próxima vez que os olhos marejados e caídos da Erica me olharem, estarei pronto para desfazer seu bico.


Lucas Lujan

terça-feira, 15 de abril de 2014

Não confunda ilusão com esperança




Ilusão é acreditar que a vida pode acontecer sem sofrimento. Esperança é lutar para diminuí-lo.

Ilusão é acreditar que a vida pode ser perfeita. Esperança é acreditar que o imperfeito pode ser bonito.

Ilusão é acreditar que é possível viver sem dor. Esperança é ter amigos com quem podemos reparti-la.

A ilusão coloca em pé para poder dar rasteiras. A esperança coloca em pé para fazer caminhar.

A ilusão cria pequenos ambientes sem janelas, para não deixar ver o que há do lado de fora. A esperança são ambientes largos e cheios de janelas, para fazer enxergar bem todas possibilidades.

Ilusão é acreditar que as pessoas não erram. Esperança é acreditar que os erros não definem ninguém.

Ilusão é esperar que as pessoas sempre façam o melhor. Esperança é escolher contar o que há de melhor sobre elas.

Ilusão é esperar sorrir sempre. Esperança é acreditar no próximo sorriso.

Não lamente a desilusão. Desiludir-se é o único caminho para quem quer a esperança.


Lucas Lujan

quinta-feira, 10 de abril de 2014

À margem do lago


Não era um dia bom. Depois de horas de trabalho pela madrugada, o grupo de pescadores voltara para a margem do lago. Frustrados por não conseguirem pescar nada, os homens lavavam suas redes. Semblantes abatidos e ombros caídos. Levar para casa uma notícia de fracasso não é fácil para ninguém.

Entre os pescadores Tiago, João e Simão Pedro. Além deles, todos nós. Afinal, quem não vive dias ruins? Há dias que o mar não está para peixe e voltamos para casa com as redes vazias, angustiados e desesperançados.

Esse é o fascínio das narrativas bíblicas: elas aconteceram com outras pessoas, mas de alguma maneira contam um pouco de nossa própria história.

Na margem do lago, Jesus ensinava pessoas que gostavam de ouvi-lo. Mal sabiam os pescadores que aquele encontro mudaria para sempre suas vidas. Percebendo a desesperança em seus olhos, Jesus arrumou um pretexto para se aproximar dos homens e suas redes.

Jesus sempre arruma um pretexto para entrar em nossas vidas, especialmente para enfrentar o desespero.

Atacou diretamente a causa do desanimo. Pediu para Simão Pedro lançar as redes e tentar a pesca novamente. Experiente, Simão Pedro desconfiou do pedido, mas o atendeu porque era a palavra do Mestre.

Eis a importância de andarmos sensíveis à voz de Jesus, ela pode salvar nosso dia.

Lançaram as redes e pescaram uma quantidade que nunca haviam pescado. Com o barco quase afundando devido ao peso dos peixes nas redes, pediram ajuda a um segundo barco, que quase afundou também. Contudo, aquela iniciativa de Jesus não se tratava de peixes, mas de homens. A intenção do Mestre era pescar aqueles pescadores.

Diante da frustração e do fracasso, Jesus pescou a coragem, a dignidade e a esperança na vida cansada daqueles homens.

Coragem para tentar de novo. Jesus fez com que eles percebessem que novas tentativas valem à pena; que entendessem que uma madrugada ruim não pode desencorajar o resto do dia, afinal as próximas madrugadas poderão ser diferentes. Andar com Jesus não é garantia de redes sempre cheias, é garantia de ter coragem para voltar a pescar. Ele está no barco dizendo: lance as redes e tente mais uma vez.

Dignidade porque, ao contrário do que aprendemos no cruel sistema econômico que vivemos, ninguém vale a partir do que produz ou consome. As pessoas valem por serem filhas e filhos amados de Deus. É o amor de Deus que confere dignidade, por isso ninguém deve andar de ombros caídos e semblante abatido. Todos nós valemos igualmente no Reino de Deus.

Esperança porque não é sempre que o mar está vazio, há dias em que está lotado de peixes. Deu a eles esperança para acreditar que a próxima tentativa podia ter sucesso, pois o fracasso de ninguém está determinado a priori. Todos têm iguais chances de fazer tentativas bem sucedidas. O futuro está aberto e por isso a vida sempre apresenta possibilidades novas.

Tornar-se pescador de homens, foi o convite de Jesus para Simão Pedro. A lição estava dada. A partir daquele momento, o pescador deveria fazer por outras pessoas o mesmo que Jesus havia feito por ele.

Redes cheias de peixes não foi o milagre dessa história. Ninguém deveria se impressionar com isso, afinal Jesus poderia encher as redes com elefantes se quisesse. Criou tudo o que existe e tem poder para tal coisa.

O milagre dessa história foi homens desencorajados encontrarem uma razão para tentar de novo com coragem. Pescadores com a dignidade ferida encontrarem seu valor no amor de Deus. Pais desesperançados voltarem para suas famílias com a esperança renovada, acreditando no futuro.

Jesus está sempre à margem do lago, pronto para subir no barco.


Lucas Lujan

terça-feira, 8 de abril de 2014

Saudades


Era um brunch. Entre salada de frutas, pães, patês, sanduíches de metro, brigadeiros e bolos,  uma cheirosa torta de frango. É incrível o poder do cheiro. Nada ativa tanto a minha lembrança. Viajo no tempo, reencontro pessoas e revivo momentos.

Em mim, o cheiro não segue o caminho do sistema respiratório. Ele entra pelo nariz, vai direto para o coração e depois escorre pelos olhos. Meu corpo é lugar onde cheiro vira lágrima, quase sempre de saudades.

Acontece quando sinto cheiro de chocolate, por exemplo. Minha memória visita o Almeida Júnior, a melhor escola que estudei. O lugar que mais gostava de estar na infância ficava ao lado de uma Ofner. O cheiro doce no ar me faz reencontrar Márcia, Lice e Cristina, minhas professoras do primário. Revivo as manhãs de futebol com Tche, Danilo e Juscelino. Relembro a amizade sincera com o Rocheteau. Os dias com Alonso, Paulo e Luís Fernando, e de como estávamos sempre grudados. Visito minhas primeiras paixões, Bruna, Karina, Sue Ellen e Aline. Recordo as amizades da Tati, Thiago Gabriel e Renato. E então acontece o fenômeno raro em meu corpo, que começa com um nó na garganta. Sinto falta da escola e dos amigos que fiz, os amei profundamente.

Nunca gostei de tortas em geral, nem de empadas. Não gosto de massa podre. Mas a torta de frango da minha mãe... Ah! A torta de frango da minha mãe! Eu podia sentir seu cheiro ainda na escada, subindo para casa depois do futebol. Ele me conquistava e com água na boca, eu me entregava por inteiro.

Mães têm o poder mágico de transformar coisas ruins em gostosas. A minha deve ser a mais poderosa de todas, porque me fez gostar desesperadamente de espinafre. Até hoje, cheiro de espinafre me faz lembrar seus deliciosos bolinhos e também da época que tínhamos meu pai em casa.

Estava na Bovespa, dentro de uma sala de reunião. Cheiro de torta de frango e lágrimas nos olhos. Que saudades da torta da minha mãe! Que saudades de chegar em casa, morto de fome, e ter à mesa seu amor. Saudades do tempo em que a Mara dormia no quarto ao lado e nossa distância não era maior que oito passos.

Quando a saudade invade, sempre traz a sensação de que não vivemos aqueles momentos de felicidade devidamente, de que não aproveitamos tudo o que eles tinham para oferecer. Por isso, quando achar que é o suficiente, dê mais um beijo. Tome mais uma taça de vinho, abra mais um sorriso e diga mais uma vez “eu te amo”. Faça o momento valer à pena, porque você sentirá saudade dele em breve.

Quem tem saudade não está só, tem o carinho da lembrança”, cantou Céu no Frevo da Saudade. É uma bonita verdade. Sentir saudades é ter a companhia dos bons momentos. É ter a convicção de que neles a vida teve significado; um recurso que o coração usa para nos lembrar das coisas, lugares e pessoas que dão valor à nossa existência.

Viver é uma curta tentativa de repetir experiências de amor e felicidade, com sorrisos de paz e alegria. A saudade é seu combustível.

Era uma manhã de trabalho. Uma torta de frango quebrou o protocolo e me arrancou daquele lugar. A saudade me salvou da rotina fria e repetida dos dias normais, e me levou para onde minha vida fazia sentido.

Que delícia é sentir saudades.

Lucas Lujan


PS: texto escrito especialmente para o blog da minha mãe. 
http://motherswithoutbordersuk.blogspot.co.uk/

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Lembrete



Foi deitar depois de ter feito algo que prometeu nunca mais fazer. Uma sensação de decepção o angustiava. A cobrança por comportamentos indesejados, já vividos em outros momentos, torturava contando mais uma vez a história que se repetiu. E mais uma, depois mais outra, e então de novo.

Querendo lembrar para sempre o tamanho de sua frustração, a fim de registrá-la perpetuamente na memória, permitiu que a dor consumisse de vez. Talvez as marcas do sofrimento em seu corpo servissem de lembrete para a próxima ocasião.

Questionava-se por sua memória fraca. Culpava-se por ela. Não sabia se reincidência era uma marca universal da humanidade ou uma fraqueza particular. Diante de tantos sentimentos confusos, questionava sua própria capacidade de raciocinar.

Apressou-se em encontrar lápis, borracha e papel, e começou a elencar suas experiências. Mergulhou em histórias que revelavam um lado de si que detestava. A partir dessas vivências esperava tirar lições para não se tornar definitivamente sua pior versão. 

Uma lista de pequenos lembretes. Desejava que fosse impressa em seu coração para ser consultada diante de toda situação difícil. Assim, antes de tomar uma decisão, estaria resguardado de ser o pior de si mesmo.

Começou anotando que pontos de vista dependem do chão onde os pés pisam. Enquanto uns veem a alvorada, outros veem o crepúsculo. Então, quando visse o Sol chegar, não deveria ignorar o ponto de vista de quem o está vendo partir.

Anotou que não deve rejeitar as pessoas por não corresponderem às suas expectativas. Quando Jesus perdoou Pedro, ensinou a não culpar ninguém por ser menos que perfeito.  Toda relação com pessoas não perfeitas é imperfeita, por isso a importância de novas chances sob a reconciliação.

Continuou lembrando que o importante não é vencer a batalha. Perder é inevitável, resta aprender com a derrota. Mais importante é reunir coragem para lutar, porque não há vida sem batalhas. A coragem vale mais que a vitória.

Remoendo suas injustiças, escreveu que justo é quem escolhe praticar com o outro aquilo que deseja para si. E que a justiça que não deriva do amor é vingança.

Os ciclos da vida se renovam, rabiscou. A vida não é uma engrenagem viciada que gira sempre em torno do mesmo eixo. O choro pode durar uma noite inteira, mas a alegria vem pela manhã. Toda nuvem nebulosa se dissipa e é questão de tempo para o Sol voltar a brilhar. Até que novas nuvens apareçam, escondam o Sol e o ciclo se renove.  

Ninguém sofre sempre, nem tampouco sempre se alegra. Não acredite que só há tristeza ou só há felicidade, sublinhou. A vida é tecida entre lágrimas e sorrisos. Por isso, vive bem aquele que sabe acolher a felicidade e a dor. Em outras palavras, feliz é quem sabe sorrir quando se alegrar é preciso, e chorar quando é necessário sofrer.

Ficar triste é motivo de pelo menos uma alegria: a de não ter se tornado insensível. A tristeza revela que ainda existem coisas e pessoas importantes, capazes de fazer sofrer. É melhor a tristeza que a insensibilidade. É melhor sentir dor que não sentir nada.

Finalmente, sua última anotação antes de se entregar à Morpheu. No caso de todos os outros lembretes serem esquecidos ou ignorados, esse estaria sempre presente como cláusula pétrea, pois poderia recuperar sua vida:

"Porque sou errante, perdoo. Porque sou imperfeito, não espero perfeição. Porque sou falho dou segundas, terceiras e quartas chances. Porque sou fraco, me identifico com quem chora. Porque repito erros que jurei nunca mais cometer, não culpo os reincidentes. Porque sou humano, não espero que meus semelhantes sejam deuses.".


Lucas Lujan