sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nem tudo pode ser reconstruído



Sempre fui fanático por futebol. Enlouquecido. A paixão me tornou um bom jogador, destaque com a bola nos pés. Mas a paixão tem seus efeitos colaterais e ao mesmo tempo me tornou um descontrolado. Tudo o que via no chão era bola e tudo o que estava diante do meu nariz, gol.  

Tinha dez ou onze anos. Apesar dos repetidos avisos de minha mãe, insistia em bater bola dentro de casa. O risco de quebrar alguma coisa aumentava a tensão e eu encarava aquilo como desafio. Afinava minha habilidade e controle da bola.

Aconteceu o óbvio, um dia quebrei a janela da sala. Um vidro enorme e espesso, que vi estilhaçar antes de entrar em pânico. Tantos alertas ignorados resultaram em cacos. Com a ajuda de um amigo consertei o estrago. Comprei uma nova janela e reconstruí a sala. Claro, antes levei a maior bronca do mundo e tentei assimilar a lição.

Não consegui.

Anos mais tarde, voltei a bater bola dentro de lugares perigosos, cercados por vidros. Aquela tensão que me obrigava a melhorar minhas habilidades e o desafio que apurava meu controle eram sedutores. Eu gostava de jogar.

Fui longe demais, contudo. Obcecado por ser cada vez melhor, entrei numa igreja coberta por vitrais. Eram enormes. Metros e mais metros de vidros lindos, coloridos e cuidadosamente pintados. Quem construiu aquele lugar estava mesmo disposto a homenagear a beleza. Verdadeiramente um espaço sagrado, daqueles que nos fazem silenciar para contemplar o divino enquanto o cheiro do incenso perfuma os pulmões.

Com a bola nos pés, procurava chutar nas colunas que sustentavam o teto da igreja, pequenos espaços entre os vitais. Consegui muitas vezes, demonstrando muita técnica. Mas descontrolado, não soube a hora de parar.

Meu bom senso me alertou muitas vezes. Era como a voz da minha mãe brigando comigo por jogar bola dentro de casa, que sempre ignorava. E de tanto ser ignorada, uma hora minha consciência calou.

Com um chute forte e preciso, acertei o maior vitral da igreja, que ficava no altar. Centenas de quilos de vidro estilhados diante de mim. Transformei o sagrado em cacos.

Repetiu-se a experiência que tive na infância. Mesmos sentimentos, mesmos medos, mesmos arrependimentos, mesmas dores. Só que desta vez não era possível comprar outro vidro para reparar o estrago. Não existia outro vitral como aquele e sua singularidade se perdeu para sempre.

Ainda tenho pesadelos com este dia. Sonho que o vitral do altar me olha suplicando mais cuidado, enquanto os outros gargalham de mim. Depois do fatídico chute, saio tentando recolher os cacos mas acabo me cortando inteiro.

Nem tudo pode ser reconstruído. Alguns pedaços voam para muito longe, outros ficam desgastados demais. Há ainda aqueles que simplesmente desaparecem. Portanto, cuidado com o que está prestes a destruir.

Lucas Lujan

17 comentários:

  1. Um alerta valioso e profundo! Obrigado por compartilhar Lucas!

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    1. Eu que agradeço, Wezz. Obrigado por ler e comentar. Abraço!

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  2. Uauu... amei a mensagem das entrelinhas, revelada apenas na última frase!

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  3. Seus textos sempre falam de forma precisa!! Obrigada :)

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  4. Associaçoes, entrelinhas ... Tudo de uma incrivel sensibilidade e inteligência! Muito bom, Lucas!

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  5. Mano. Sou mto velho rsrsrs. Não aguento mais tanta emoção assim. Q animal esse texto!

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    1. Valeu, mano. Fico feliz que tenha gostado!

      E não ta velho, não. É só aparência...rs

      Saudade.

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  6. Maravilhada com este texto, tanta verdade nele e com uma vontade enorme que tudo fosse reconstruído, para poder tê-lo conosco. :/

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  7. Texto magnifico! Transborda sentimento. Muito bom, Lu.

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