quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Doce jabuticaba



31 de Dezembro de 2014. Dia de se despedir. Por motivos pessoais, detesto despedidas. Muito cedo precisei dar adeus ao que conhecia como lar e família. Por isso, só a ideia de dizer adeus me machuca, precisar dizer de fato me fere de morte. Será que ninguém percebeu o tamanho da injustiça que é precisar dizer adeus às pessoas que amamos? Por que ninguém faz nada a respeito?

Por necessidade, o amor desenvolveu um recurso contra despedidas indesejadas: aprendeu a eternizar a memória. Perdi meu avó há quase vinte anos, mas continuo amando-o. É assim, porque a memória eterniza o que amou. Isso não aprendi sozinho, mas com Rubem Alves:

"Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno".

Rubem Alves, que por sinal foi uma despedida indesejada que o ano me obrigou. Nenhum ser humano mexeu mais comigo nas dimensões política, espiritual e poética do que ele. Chorei em nossa despedida. Chorei copiosamente, sem vergonha. Fiquei indignado, pessoas como ele não deveriam acabar. Morri um pouco também.

Outra despedida dolorida foi a de Gabriel García Márquez. Esse ano perdi algumas amizades preciosas, às quais me dediquei em muitos e muitos anos anteriores. Despedir-me de bons amigos também me matou um pouco. Consolo encontrei na reconciliação com boa parte deles, porque me deram uma das maiores experiências da vida humana: o perdão. Sobre a grandeza da amizade e da reconciliação, é de Márquez as palavras escritas em meu coração: 

“Um único minuto de reconciliação vale mais do que toda uma vida de amizade”.

Com eles, partiu também João Ubaldo Ribeiro. Ele, que como Alves e Márquez, tinha sangue marxista correndo em suas veias. Deles aprendi que a justiça social e o respeito à dignidade humana são simplesmente inviáveis dentro do capitalismo. Meu sangue avermelhou ainda mais, virando à esquerda. Aprendi que política é fundamental e imprescindível, e até que todos tenham essa dimensão continuaremos a votar, nas palavras de Ribeiro, dessa forma: 

“O sujeito vai lá, tapa o nariz e vota”.

Morreu também Ariano Suassuna. Mais uma vez, chorei. Um dos grandes brasileiros, um dos grandes nordestinos que entregou ao Brasil produções de valor inestimável. Como os três acima, acreditava num populismo de coração, marcado pela profunda fé no povo. Coloca na boca de João Grilo o sentimento de quem vive à margem, bem como o a esperança que nasce entre eles, propagada pela melhor marca do cristianismo latino-americano – a saber, a Teologia da Libertação:

“É tanta qualidade que exigem para dar emprego, que não conheço nenhum patrão com condições de ser empregado.”

“Jesus morreu pelo pobres, Chicó. A gente pode se permitir certas intimidades.”

Homens sensíveis às causas do povo. Homens sensíveis aos outros. Homens sensíveis à natureza humana. Homens sensíveis. Homens poetas. A força da poesia em cada um deles, em toda a sua extensão de beleza, me fez perceber que a metáfora é transformadora em todas as dimensões.  É o caminho legítimo da salvação e da justificação do mundo.

Falando em poesia, o ano me levou Manoel de Barros. Um dos maiores. Fui apresentado a ele um pouco tarde, infelizmente. Mas fiquei feliz por descobrir sua inclinação à natureza, às coisas mais simples, encontradas no quintal de qualquer casa com um jardim. Tantas vezes tentei fazer poesia assim, e encontrar alguém que realmente conseguiu é inspirador. É dele a definição de poesia que mais gosto:

“Poesia é voar fora da asa”.

Escrevo para homenagear homens que dedicaram suas vidas à literatura. Dedicação que, pelo menos para mim, não foi em vão. Todos eles mexeram profundamente em minha visão de mundo, afetando-a de maneira irreversível.

Escrevo também  para fazer minha história e contá-la do meu jeito. Quero deixar registrado que hoje, sentado na sala do apartamento do Talles e da Nádia, em Paris, fiz minha oração por esses que foram. Minha prece, que acontece no encontro entre a ponta dos meus dedos e as teclas do meu notebook. Aprendi, com esses que partiram, que existe mais de um jeito de rezar e agradecer.

Paris, palco da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Ambas deixam o futuro mais saboroso, assim como a jabuticaba que sonhamos colher do pé que acabamos de plantar. É a esperança de desfrutar de sua doçura no futuro que nos faz cuidar da terra no presente.

Morreram grandes homens, e para eles fui obrigado a dizer adeus. Morreu grande parte de mim, e dela fui obrigado a me despedir. Mas sou um homem de fé,  e fé é apostar que a morte é apenas o anúncio da vida que está por vir.

A jabuticaba só adoçará se sua semente morrer para fazer nascer a jabuticabeira. Os pontos finais não são nada além do lugar onde os recomeços se encontram.

Lucas Lujan

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Salada de sonhos



Ele é predominantemente verde, mas com cores por todos os lados. Vermelho, laranja, roxo, amarelo e tantos outros tons entre dó e si. Vivo e pulsante, é possível sentir o chão adocicado vibrar sob os pés. É assim meu jardim de sonhos.

Lá planto esperanças para fazer a terra engravidar do futuro. Ela gesta em mim possibilidades e expectativas, cada uma com um sabor. São mangas, goiabas, amoras, caquis, jabuticabas, melancias e tangerinas.

Nem sempre a fruta nasce em seu próprio pé. Já aconteceu de nascer uva em macieira. Alguns sonhos não respeitam a lógica, transgridem as circunstâncias e nascem onde querem. Eles tocam a canção em F#m7/D#, sobre a falta de controle que pauta a vida de todos nós.

Aconteceu num fim de tarde, sem nenhum aviso. Colhi umas acerolas e, quando coloquei a primeira na boca, senti o estranho sabor amargo dominar o fundo da minha língua. Nem sempre a vida é doce.

Quando os dias amargam é preciso revisitar os passos dados na última plantação. Pode até ser que não tenha nada a ver com o processo utilizado ou com as sementes plantadas, às vezes as contingências são maiores e os acidentes inevitáveis. Contudo, na maior parte das histórias, o problema está mesmo nas sementes que foram lançadas.

Semeadas por um coração amargo, frutificam dias indigestos. Apesar do clichê, é verdade que quase sempre se colhe o que se plantou. Para que o pé de amigos fique carregado e colorido, é preciso plantar fidelidade, parceria e cumplicidade. Plantando mentiras e infidelidade, o que se obtém são amizades amarguradas.

Que fique claro para todos os jardineiros. Para que os sonhos façam sucos refrescantes é preciso cuidar das sementes. Para que a felicidade visite a ponta da língua, é preciso cuidar do pé de amor(as).

Vez por outra, contudo, a lógica se quebra. Como disse, às vezes colhemos o que não plantamos. Pode acontecer de plantarmos ódio e colhermos perdão, semearmos traição e colhermos fidelidade. Essa é uma das colheitas mais misteriosas que existem, porque rompem com todas as condições normais de temperatura e pressão. É a colheita da graça.

Ela não apenas desrespeita causa e efeito como transgride. A graça é sempre transgressora. Ela não apenas deixa de punir como deveria, como oferece um favor imerecido. Ela não investiga qual a semente plantada para frutificar compaixão. A compaixão é seu fruto incondicional.

Aconteceu no meu jardim. Enquanto passeava colhendo amarguras, enxerguei um pé de compaixão que não plantei. Tinha uma copa linda, que me fixou os olhos. Nela estavam frutos doces e carnudos. Deu-me de comer quando tive fome.  

A graça transgride e por isso incomoda. Ela não cobra sangue de quem fez sangrar. Um jardim feito só de lágrimas não atrai o olhar. Só quem deseja jardins coloridos é capaz de aceitar a transgressão da misericórdia e fazer da gratuidade uma rede para descansar sob o abacateiro.  

Lucas Lujan

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Amanhã tem sol





Eram 07h45 e o vento soprava gelado. As árvores agitavam suas copas, que contrastavam com nuvens carregadas. O dia nublado não oferecia um convite para desfrutá-lo sentado ao pé da jabuticabeira, mas como não sou apegado a formalidades, decidi me sentar sob as jabuticabas mesmo assim.

Peguei um casaco pesado e um copo com café quente,  sentei na grama e apoiei minhas costas no tronco da árvore. Me preparei para passar as próximas horas em silêncio, apenas ouvindo a prosa que o jardim tinha para contar.

Passado algum tempo, o quieto jardim abriu um belo sorriso amarelo: uma plantação de girassóis saltou diante dos meus olhos chamando minha atenção. Observei cada flor e reparei que todas estavam em suas posições originais, pois a ausência do sol as deixava sem movimento. Todas, menos uma.

Entre todos girassóis estáticos daquele dia grisalho, um se movimentava como se o sol estivesse raiando. Intrigado, me demorei na contemplação do fenômeno inusitado.

No começo da manhã, ao contrário de todos os outros, o meu girassol se inclinava para o leste. Era lá que o sol lhe daria um beijo de saudação. Ao longo do dia, seguiu o caminho que o Grande Astro faria até se despedir no oeste, repousando no horizonte. Do oriente ao ocidente, aquela incrível flor percorreu todo o trajeto solar ignorando o dia pálido.

Colhi algumas jabuticabas e meditei ao cair da noite. A doçura das frutas me ajudou a saborear aquela cena. Digeri a conversa e logo entendi seu ponto.

Nos nublados dias de chuva, o girassol fecha seus olhos e se movimenta como se o dia estivesse raiando. Repete o mesmo movimento dos dias ensolarados, ensaiando para o próximo encontro com o sol. É assim que mantém sua raiz aquecida, num gesto de esperança.

Levantei-me e fui até a flor. Cuidadosamente arranquei o girassol da terra e plantei sua raiz no peito, para germinar um campo de esperança em mim. Um lugar onde eu possa colher o futuro. Agora ensaio movimentos de alegria mesmo nos dias tristes, porque aprendi a confiar que sempre há um próximo encontro com o sol.


Lucas Lujan 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O mundo lá fora


Uma alegria agitada. Inquieta e com o rabo abanando, enfia o focinho no vidro e assiste o mundo passar diante dos seus olhos, do lado de fora do carro. São assim os passeios de carro da Chérie, a cadelinha shi-tzu da minha irmã e do meu cunhado.
                                                                                
Sentada no colo do passageiro, contempla o desconhecido e misterioso universo que existe fora de seu abrigo aquecido e protegido. Os cachorros que vê na rua são diferentes dela. Alguns bem diferentes. Fortes, grandes, com patas longas e focinhos compridos. Outros têm orelhas largas e caídas, rabos cortados ou bolinhas pretas no corpo.

Ela se encanta com a diversidade das raças. Percebe que existem outros jeitos de ser cachorro e outros mundos possíveis para viver. Comparando-se, às vezes gostaria de ser um pouco maior ou menos peluda. Gostaria de morar numa casa grande ao invés de um apartamento. Percebe que talvez nem sua raça nem seu mundo sejam os melhores que existem.

Sei disso porque ela me conta sobre essas experiências. Claro, nem sempre. Afinal, não é toda hora que um cachorro fala. Só acontece quando deixa o constrangimento de lado depois de um ou dois biscoitos afogados em Amarula que dou para ela. Ou talvez depois de dois ou três drinks que preparo para mim mesmo com a bebida. Seja como for, não acontece sempre.

Sua reclamação mais constante, contudo, é a coleira que é obrigada a usar. Toda vez que a porta do carro abre anunciando várias novas experiências e possibilidades, tudo o que ela consegue fazer é dar cinco passos e meio até que a coleira trave a sua aventura. Ela se vê obrigada a permanecer dentro de um limite previamente estabelecido por seus donos.

Uma vez perdi um cachorro. Um cocker preto chamado Simba. Fugiu pelo portão e desapareceu. Perdeu-se no mundo lá fora, porque não conhecia absolutamente nada sobre ele. Até encontrar o caminho de volta para casa, teve que viver a vida como ela é. Sem coleiras, sem limites. Sofreu e se machucou. Mas quando voltou, estava mais cocker do que nunca. A liberdade tinha feito com que encontrasse consigo mesmo e entendesse seu papel no mundo. Nunca mais usei uma coleira nele.

Geralmente donos não deixam seus cachorros sem coleiras, pois querem evitar a experiência que o Simba teve. E eu entendo. Ninguém quer ver seu cachorro sofrendo e ferido. Por isso se comportam como donos e estabelecem um perímetro seguro para seus cães.

Fiquei pensando na conversa com a Chérie. Em quantas pessoas assistem a vida passar diante dos seus olhos, e com o focinho colado no vidro desejam uma experiência de vida que ultrapasse o limite do abrigo aquecido e protegido, mas acabam travadas por códigos morais e valores religiosos que impedem que encontrem consigo mesmas e entendam seu papel no mundo.

Como coleiras, doutrinas e dogmas encurtam o espaço da liberdade humana. Mas ao contrário dos cachorros, seres humanos não têm dono. Mulheres e homens nascem para a liberdade. 


Lucas Lujan

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Deus é macio e saboroso



Reunir alegria suficiente nos dias bons para enfrentar a tristeza dos dias ruins. Esse movimento mantém a esperança aquecendo durante o inverno. Momentos de contentamento aparecem e deles é preciso se tornar aprendiz. Ser feliz tem mais a ver com o jeito que se vive uma circunstância do que com a circunstância em si.

Era um almoço. Na mesa amigos, piadas, risadas e, claro, comida. Ingredientes perfeitos para o bolo das boas lembranças. Colocaram-nos na batedeira e depois para assar. Cheiro de sorriso etéreo no forno.

“- Isso não é picanha”, exclamou um de nós. E continuou: “- Pode até ter o nome da picanha, mas o sabor é de coxão mole”. Fiquei pensando que as palavras podem ser traiçoeiras ao tentar definir algo; ao tentar transformar o sabor pelo rótulo. Picanha é picanha, coxão mole é coxão mole. Chamar o coxão mole de picanha não o deixará mais gostoso.

No campo das definições, o sabor desempenha um papel melhor que as palavras. Em um mundo regido por sentidos, as sensações promovem uma melhor experiência de conhecimento. Pode-se colocar um sorvete Kibon dentro da embalagem de um Häagen-Dazs, mas ele ainda será Kibon.  

Assim, não adianta chamar de bom o que tem gosto ruim. Nem chamar de salgado o que tem gosto doce. De nada vale tentar desvalorizar alguém que tem valor com palavras de ódio. Tampouco engrandecer quem é pequeno usando frases de efeito. As palavras desaparecerão quando o paladar provar seu gosto.

É assim, também, a respeito de Deus. Por se tratar de uma palavra, é possível usá-la para qualquer coisa. Enquanto palavra, “Deus” pode dar nome a todo tipo de carne. Contudo, coxão mole nunca será picanha porque seu sabor é outro. Se for duro, seco e difícil de mastigar, não pode ser Deus de fato.

As religiões se parecem com churrascarias. Algumas vendem coxão mole como se fosse picanha; outras brigam para descobrir quem sabe preparar a melhor picanha. Mas no fundo, no fundo, não se trata da picanha. Trata-se de quem vai vender mais carne.

O almoço acabou e voltamos para o trabalho. Tive a sensação de ter me encontrado com Deus. Não com a palavra, mas com o sabor. Não porque estava numa churrascaria, mas por causa da mesa em que me sentei.

Não são as palavras que melhor revelam a Deus. Palavras podem enganar. Discursos podem ser bonitos mas esconder coisas feias. A melhor revelação está no que sentimos, nas sensações que o gosto de Deus provocam na alma. Se for macio e saboroso é Deus, mesmo que O estejam chamando por outro nome.   
   
Lucas Lujan

terça-feira, 24 de junho de 2014

Ninguém nasce sabendo voar



O pai voou até o chão e com o bico o devolveu ao ninho. Começou tudo de novo. Tomou a comida e se afastou. Com as asas e alguns barulhos, provocou seu filhote a voar atrás do alimento.

Concentrado, o filhote reunia coragem e força para tentar voar. Batia as asas com enorme esforço, porque seu corpo imaturo ainda não desenvolvera os músculos necessários para executar aqueles movimentos, muito menos para aguentar o peso de seu corpo. 

Com menos de dois segundos no ar, o filhote mais uma vez despencou e caiu no chão. Apenas depois da terceira vez que vi a cena se repetir entendi que se tratava de uma aula. O pai estava ensinado seu filhote a voar.

O começo de tarde me convidou para assistir o que seria uma lição não apenas para o filhote. Foi o barulho de seu corpo frágil batendo no chão que me chamou atenção. O barulho não era dolorido nem angustiante. Era o sedutor som da vida que me alertava.

A confiança do pai era inabalável. Tinha certeza que seu filhote podia voar. Como se soubesse ler latências investiu sem cessar. Demonstrou enorme interesse pelo voo de sua cria e apostou nele apesar das quedas. Elas não eram suficientes para fazê-lo desistir, e, na verdade, pareciam o estimular ainda mais.

É como se o pai soubesse que cair era parte do processo; que nenhum pássaro aprende a voar sem dor e machucados.

O filhote estava determinado. Sonhava com o momento em que suas asas o sustentariam firme no céu. O olhar de seu pai o convencia que a diferença entre o que era e o que poderia vir a ser dependia apenas de correr atrás de uma versão melhorada de si, que soubesse aproveitar melhor aquelas asas.

Cheio de coragem e ousadia, o filhote não temia abandonar a proteção ninho. Estava  certo de que o futuro lhe reservava sucesso, como se tivesse nascido para voar.

Então, quando o crepúsculo avermelhou o céu, finalmente vi o passarinho aprendiz voar e alcançar sua comida. Seu pai o abraçou e beijou orgulhoso, enquanto o filhote passava de menino para homem. E eu, que me achava homem, chorei como filhote.

Pássaros e homens têm destinos comuns. Não fomos feitos para gaiolas, mas não nascemos sabendo voar. Precisamos de alguém que nos incentive a bater asas. E apesar das cicatrizes e lembranças do chão duro que caímos tantas vezes, nada nos faz mais feliz que rasgar o céu com liberdade.

Lucas Lujan

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nem tudo pode ser reconstruído



Sempre fui fanático por futebol. Enlouquecido. A paixão me tornou um bom jogador, destaque com a bola nos pés. Mas a paixão tem seus efeitos colaterais e ao mesmo tempo me tornou um descontrolado. Tudo o que via no chão era bola e tudo o que estava diante do meu nariz, gol.  

Tinha dez ou onze anos. Apesar dos repetidos avisos de minha mãe, insistia em bater bola dentro de casa. O risco de quebrar alguma coisa aumentava a tensão e eu encarava aquilo como desafio. Afinava minha habilidade e controle da bola.

Aconteceu o óbvio, um dia quebrei a janela da sala. Um vidro enorme e espesso, que vi estilhaçar antes de entrar em pânico. Tantos alertas ignorados resultaram em cacos. Com a ajuda de um amigo consertei o estrago. Comprei uma nova janela e reconstruí a sala. Claro, antes levei a maior bronca do mundo e tentei assimilar a lição.

Não consegui.

Anos mais tarde, voltei a bater bola dentro de lugares perigosos, cercados por vidros. Aquela tensão que me obrigava a melhorar minhas habilidades e o desafio que apurava meu controle eram sedutores. Eu gostava de jogar.

Fui longe demais, contudo. Obcecado por ser cada vez melhor, entrei numa igreja coberta por vitrais. Eram enormes. Metros e mais metros de vidros lindos, coloridos e cuidadosamente pintados. Quem construiu aquele lugar estava mesmo disposto a homenagear a beleza. Verdadeiramente um espaço sagrado, daqueles que nos fazem silenciar para contemplar o divino enquanto o cheiro do incenso perfuma os pulmões.

Com a bola nos pés, procurava chutar nas colunas que sustentavam o teto da igreja, pequenos espaços entre os vitais. Consegui muitas vezes, demonstrando muita técnica. Mas descontrolado, não soube a hora de parar.

Meu bom senso me alertou muitas vezes. Era como a voz da minha mãe brigando comigo por jogar bola dentro de casa, que sempre ignorava. E de tanto ser ignorada, uma hora minha consciência calou.

Com um chute forte e preciso, acertei o maior vitral da igreja, que ficava no altar. Centenas de quilos de vidro estilhados diante de mim. Transformei o sagrado em cacos.

Repetiu-se a experiência que tive na infância. Mesmos sentimentos, mesmos medos, mesmos arrependimentos, mesmas dores. Só que desta vez não era possível comprar outro vidro para reparar o estrago. Não existia outro vitral como aquele e sua singularidade se perdeu para sempre.

Ainda tenho pesadelos com este dia. Sonho que o vitral do altar me olha suplicando mais cuidado, enquanto os outros gargalham de mim. Depois do fatídico chute, saio tentando recolher os cacos mas acabo me cortando inteiro.

Nem tudo pode ser reconstruído. Alguns pedaços voam para muito longe, outros ficam desgastados demais. Há ainda aqueles que simplesmente desaparecem. Portanto, cuidado com o que está prestes a destruir.

Lucas Lujan

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Fome de vida


Massas pré-assadas em forma de bolinhas, organizadas em assadeiras. Ingredientes caprichosamente separados, prontos para o trabalho: queijos, calabresas, tomates, azeitonas, cebolas, ervilhas, manjericão, brócolis, rúculas, berinjelas. Forno aceso, temperatura ideal. Estava tudo pronto para a pizzaria abrir.

Essa era a rotina na pizzaria do meu tio, que acompanhei algumas vezes. Eu adorava. Durante todo o período de trabalho eu sentia fome. Não importava o quanto havia comido, queria sempre mais. Aquele cheiro de pizza assando era mais sedutor que o bom senso do meu apetite.

Era uma pizzaria familiar. O pizzaiolo, outro tio. Eu o assistia com admiração enquanto preparava uma pizza. Ele caprichava. Abria a massa com força e determinação, depois espalhava o molho de tomate e então recheava. Sem economizar. Ver o processo era saboroso.

Uma vez, já no fim da noite, ele perguntou se eu queria preparar minha própria pizza. Eu flutuei de alegria por uns dez segundos até ele agarrar minhas pernas e me devolver ao chão. Se eu queria? Não tinha nada que queria mais! Depois de vê-lo tantas vezes em ação, finalmente poderia imitá-lo.

Ele foi o maestro me ensinando as primeiras notas. Fazia o movimento e eu repetia. Primeiro abriu sua massa, e abri a minha. Passou o molho de tomate, fiz o mesmo em seguida. Na hora do recheio, disse que eu teria que fazer esse movimento sozinho. Pediu-me para imaginar a pizza mais deliciosa do mundo e então inventá-la. Podia colocar o que quisesse, porque eu era o dono daquela pizza.

Aquela noite marcou meu jeito de ver o mundo. Entendi o motivo de Deus ter criado o universo e depois tê-lo entregue em nossas mãos. Ele é o pizzaiolo. Fez tudo do melhor jeito para nos ensinar a fazer nossa própria pizza. Deixou a massa e os ingredientes para usarmos segundo nossos desejos na criação de nosso mundo.

Para criar pizzas, pizzaiolos usam farinha e fermento.

Para criar o mundo, Deus usou a beleza. Ensinou, assim, de onde devemos partir para criar os nossos.

Cada um de nós tem um universo pessoal. Somos responsáveis por criá-lo. O caminho é imaginar o mais belo de todos e então inventá-lo, usando os ingredientes preferidos.

Somos os donos de nossos mundos. Quanto mais beleza colocarmos nele, mais fome de beleza teremos. O cheiro da beleza assando no forno sempre abre o apetite. De uma vida bonita, sempre se quer mais. 

Lucas Lujan

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O céu existe


O Sol ardia cáustico. Queimava a pele provocando incômodo. O calor maltratava e meu corpo chorava pelos poros. Sede, muita sede. À beira da desidratação, fraco e desgastado, quis ser salvo. Quis um lugar onde pudesse descansar. Passei a pensar no céu.

Céu é onde se mata a sede antes que ela comece a castigar. É onde se encontra sombra e água fresca; onde é possível respirar para ventilar o calor que tortura. O céu é isso, lugar onde punição e tormento não sentam à mesa.

Imaginei o sofrimento dos que vivem expostos à radiação, sem abrigo ou proteção. Estes envelhecem mais rápido. Sua saúde é frágil, são propensos a tumores. Protegem-se como podem. Escondem-se completamente com roupas, panos e trapos, deixando apenas os olhos destampados para não perderem a visão.

Enxerguei a certa distância, a copa de uma árvore. Enorme e cheia de folhas, que de tão densas pareciam uma uniforme massa verde. Contrastando com elas, o céu. Sorri e tive a sensação de encontrar abrigo.

As folhas exercem função vital. São responsáveis pela respiração e produção de alimento. Além disso, embelezam e fazem sombra. Nelas é possível se refugiar da ardência dos raios solares e se despir de todo revestimento contra eles. São lugar de descanso.

Sentei ao pé da árvore e me senti acolhido por um amigo. Afinal, amigos e folhas têm a mesma função. Ajudam a respirar e repor as energias. Deixam a vida mais bonita e fazem sombra em dias ensolarados. Neles se pode abrigar. São escudos contra a agressiva radiação solar. Eu estava no céu.

Céu é o amigo que mata a sede e ventila o calor que tortura o corpo. O céu é isso, lugar onde punição e tormento não sentam à mesa, conhecido também como amizade. 

Senti-me bem e descansei. Aprendi que todas as vezes que se olha para a copa de uma árvore se vê o céu ao fundo porque estão sempre misturados. As folhas contam que, de algum um jeito,  o céu existe.



Lucas Lujan

domingo, 4 de maio de 2014

Para curar a amargura




Gosto de café. E o prefiro em sua pureza, amargo. Não o adoço de jeito nenhum porque o melhor sabor dele se perde. Mas café é uma deliciosa exceção já que não gosto de mais nada amargo, sobretudo pessoas.

Pessoas amargas não são deliciosas. Deliciosos são brigadeiros, por isso estão sempre adoçando festas. Já pessoas amargas nem em festas vão, ficam em suas casas imaginando como os salgados e os assuntos estão ruins.

Gosto de pessoas. E prefiro as mais doces. Mas entendo que as circunstâncias da vida, de tão amargas, comprometem sua doçura. Nem sempre é fácil tomar um gole de amargura e adoçar em seguida.

Não é fácil, mas é possível.

A amargura esbarrará em você, mas não precisa deixá-la te atropelar. Você pode frear uma careta com um sorriso. No fundo, depende de qual vida quer levar. Braços podem para dar socos ou abraços, decida como quer usar os seus.

Se quiser uma vida com leveza, seja leve. Se quiser uma vida com bondade, seja bondoso. Se quiser uma vida amável, seja amoroso. A vida que se quer depende de como se age. E isso não tem a ver com recompensa, como numa relação de troca.

Trata-se de adicionar à vida seus temperos preferidos, dando a ela o sabor que quer. Em outras palavras, ser no mundo aquilo que gostaria que o mundo fosse. Ser o protagonista de atitudes positivas mesmo diante de situações negativas.

Quando a vida não for amável, continuar respondendo amavelmente a ela porque se quer que o amor vença. Quando a vida não for justa, continuar procurando a justiça porque se quer que a justiça prevaleça. Quando a vida não for doce, manter a doçura porque se deseja um mundo mais doce.

Jesus era uma pessoa deliciosa, feita de chocolate. Foi traído por Judas e mesmo assim lavou seus pés. As dores da vida podem ser vencidas com amor. A amargura perde sua força quando se responde a ela com doçura.


Lucas Lujan

terça-feira, 22 de abril de 2014

Não desista de si mesmo


Era uma conversa por telefone. Amigo de longe, ser humano bonito. Duvidava de sua coragem para viver. Eu, ao contrário, o julgava forte e seguro. Admirável. Era sensível e sabia tratar as pessoas com carinho.

Enquanto conversávamos, me confundi várias vezes com ele. Enfrentávamos dramas, não semelhantes nas circunstâncias, mas nas dores. Todos que sofrem, não importa o motivo, têm em comum a dor. Esse deveria ser um convite à solidariedade e à compaixão mas, egoístas, insistimos em sofrer sozinhos e ignorar o sofrimento alheio. Tão pequeno de nossa parte.

O remédio para o sofrimento não é deixar de sofrer, é ter com quem reparti-lo. Não sofrer é uma impossibilidade, dividi-lo é empreendimento do amor. Descobrir que alguém sente nossa ferida é o caminho para curá-la, porque a dor se dilui nos corações envolvidos. Quem tem companhia anda pelo vale da sombra da morte sem temer.

Contava-me que pensara em desistir da vida. Tão breve e frágil, muitas vezes perdia o sentido e nem sempre era fácil reencontrá-lo. Divagava sobre todas as inseguranças e incertezas da existência. Ele tinha razão, suas palavras me atingiam e encontravam em mim cabimento.

Tantas vezes pensei em desistir. Entregar-me à correnteza dos dessabores e me afogar no mar do esquecimento. Já quis mesmo me esquecer de mim. Por isso fui honesto e disse a ele que muitas vezes sentia o mesmo, e acreditava que todos, em algum momento, se sentiriam assim. É a inevitável angústia de viver, o desespero humano que nos visita hora ou outra. Legítimo.

Contei à ele sobre quando meu pai deixou minha família. Enfrentamos dias difíceis e amargos. Muitas vezes ouvi minha mãe chorar no banho, porque tentava nos proteger de seu sofrimento e desespero. Falei que ela tinha motivos para desistir.

Mas não desistiu.

Para o desespero humano, um salto de fé. Minha mãe não sucumbiu porque tinha fé. Acreditava que a angústia e o desespero não eram maiores que o amor; que os próximos dias seriam melhores, porque a felicidade era possível. E de fato a vi feliz nos anos que se seguiram.

Então passei a acreditar no futuro também. Vi que ele traz motivos para querer viver. E porque acredito, não desisto. O segredo é reunir forças nos dias bons para enfrentar os ruins.

A vida é bonita, mesmo quando faz careta.  Falei para ele sobre as infinitas possibilidades que estaria perdendo e sobre todos os amores que não viveria se entregando. Falei dos amigos que não faria, da família que não teria e dos vinhos que não experimentaria.

A vida é tão boa que seduziu Deus. Entregue, se fez homem para vivê-la.

Não se trata de ignorar as dificuldades da vida, mas de dar o salto de fé e enfrentá-las com bom ânimo. 

Encerrei a conversa com uma alegoria, que construí para nós dois:

“- Pense nas flores dentes-de-leão, amigo. Quando estão secas e o vento sopra forte, se despedaçam e voam para longe. Ficam com a aparência destruída. Mas são suas sementes que voam, e farão brotar mais dentes-de-leão noutros lugares. O mesmo acontece com a gente. Quando o vento atinge com violência nos despedaça e destrói, mas nossos cacos logo encontram terreno fértil para renascermos de maneiras novas e bonitas. Sempre que pensar em desistir, lembre que os campos ficariam menos coloridos sem dentes-de-leão.”.


Lucas Lujan